Um filme brasileiro que examina a história da América Latina sob a perspectiva do Sul Global

Sul Global

O premiado filme Tropical Utopia estreia no Brasil com Noam Chomsky e Celso Amorim apresentando a história das ditaduras e a ascensão do neoliberalismo no continente.

17/03/2024 07:00 – Modificado há 4 meses

João Amorim, diretor e roteirista do documentário Tropical Utopia, exibido em 12 festivais ao redor do mundo. Foto: Divulgação

Nesta era de conteúdos rápidos e superficiais nas plataformas de streaming um documentário chama a atenção pela profundidade de seus temas e pela forma estranha como o roteiro foi executado: essencialmente trata-se de uma conversa entre o intelectual americano Noam Chomsky e o embaixador brasileiro e ex-ministro Celso Amorim.

Tropical Utopia é intercalado com animações que literalmente “desenham” como os golpes militares derrubaram sistematicamente governos de esquerda nas Américas na década de 1970, e mostram como o neoliberalismo foi imposto à região, sob a perspectiva dos países do Sul Global. Porém, o filme – que já ganhou prêmios em festivais ao redor do mundo e estreou no circuito comercial do Brasil – consegue a façanha de ser leve, imaginativo e até emocionante.

Leia abaixo uma entrevista exclusiva com o diretor João Amorim, que nos conta como surgiu a ideia do filme, os desafios que a produção enfrentou e como foi gravar com seu pai, embaixador e um dos heróis do documentário, Celso Amorim .

Tropical Utopia trata de temas complexos de forma educativa e até imaginativa, mas ao mesmo tempo é um diálogo entre dois intelectuais. Como surgiu a ideia do roteiro?

Morei muitos anos nos Estados Unidos e foi lá que descobri a obra de Noam Chomsky. Li muitos livros dele e sempre conversei com Celso, meu pai, sobre querer criar algo com Chomsky.

Há alguns anos, após se tornar ministro da Defesa no governo da presidente Dilma Rousseff, Celso começou a dar palestras e a viajar por diversas universidades. Em uma dessas universidades ele conheceu Naoum. A esposa de Chomsky, Valeria, brasileira, marcou o encontro entre eles, e meu pai, que conhecia meu gosto pelo trabalho de Noam, me enviou uma foto desse encontro – e foi ela quem me incentivou a fazer o documentário. Quando vi o filme, senti que tinha que fazer um filme que não fosse apenas sobre o personagem do Naoum, como outros documentários que já tinha visto, mas sobre algo que unisse os dois.

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Qual é essa conexão? Como você viu a possibilidade de criar esse diálogo?

Na minha opinião, a melhor forma de combinar os dois é falar da política americana em relação à América Latina e da visão crítica de ambas as partes, que nem sempre concordam entre si, mas têm uma perspectiva próxima sobre o assunto. Então o nome veio imediatamente. Na verdade, o nome veio antes de tudo: Utopia Tropical.

Desde então, começamos a desenvolver o projeto com o objetivo de torná-lo público, até que meu pai me ligou uma noite para avisar que Noam chegaria ao Brasil em duas semanas. Ele me perguntou se eu queria gravar com ele.

Aconteceu assim de repente?

Sim, absolutamente. Não estávamos preparados e não tínhamos financiamento, mas concordámos. O Noam estava no Brasil e não podíamos perder a oportunidade. Então, nesse momento moderei essa primeira conversa entre os dois. Foi uma conversa totalmente livre, sem nenhum texto principal. Na verdade, tive a ideia de fazer algo sobre a ascensão e queda dos governos de esquerda, e a influência da mídia, e apenas moderei a conversa, que foi curta, cerca de 40 ou 50 minutos.

Depois disso, registramos o projeto na FAC do Brasil, um edital de financiamento cultural, e ganhamos. Mas o apelo demorou quatro anos para que ele fosse libertado. Depois de uma longa jornada, tivemos que entrar com recurso, ir à Justiça… Tivemos que modificar o projeto, porque o primeiro projeto foi escrito há quatro anos, em 2018.

Na segunda vez que encontrei Naoum, conduzi a entrevista sozinha com ele. Ele estava envelhecendo, tinha 94 anos na época, e tive que me isolar em um hotel por cinco dias, sem pessoal. Sua esposa Valéria estava sozinha lá. Depois disso, gravamos uma entrevista apenas com meu pai, e então os dois tiveram uma conversa remota.

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Tropical Utopia trata de importantes temas políticos a partir de uma conversa entre dois pensadores contemporâneos, utilizando a animação de forma educativa e trazendo um toque de leveza a temas complexos… É sem dúvida uma ideia muito ousada…

Foi um verdadeiro desafio. Enfrentamos muitas limitações, uma delas foi a disponibilidade e idade avançada de Noam. No nosso primeiro encontro ele já tinha 90 anos. Tínhamos várias ideias de como gravar com ele, mas a Valéria foi bem clara: não podíamos fazer nada com ele andando na rua, sem palestrar, nem na rotina dele… era só uma conversa e pronto. Então, esse fator específico, em termos de linguagem, foi imposto desde o início.

Aí tivemos que trabalhar com essa realidade, e a animação se apresentou como uma alternativa para trazer aquela leveza que você mencionou… Trabalho como animador há muitos anos, e uso muito esse recurso no meu trabalho e acho que funciona bem com documentários. Acrescenta leveza e ajuda a resumir ideias muito complexas, como a origem do neoliberalismo – haha! Essas coisas, se traduzidas em imagens, facilitam a compreensão das pessoas.

Também trabalhamos com imagens de arquivo, o que foi incrível. O filme inclui 600 fotografias de arquivo, desde a década de 1930 até os dias atuais. Foi difícil conseguir as imagens em boa resolução, licenciá-las… e a trilha sonora ajudou a criar essa atmosfera, essa leveza.

Assista ao vídeo da entrevista

Como as pessoas foram aceitas?

Já participamos de 12 festivais até agora, sendo os três maiores no Brasil – Brasília, Rio e São Paulo; Fomos ao Festival de Havana, que é muito famoso; E ganhamos prêmios na Venezuela e em Portugal… A recepção de um documentário sobre temas políticos complexos, sobre quase meio século de relação entre a América Latina e os Estados Unidos, do ponto de vista de dois pensadores conversando, é surpreendentemente boa (risos).

Mas não temos expectativas irrealistas. Hoje em dia, os cinemas raramente reservam espaço para documentários, principalmente com esta orientação política.

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Então tentamos simplificá-lo, colocá-lo de uma forma mais compreensível e produzir um filme mais curto que destacasse os problemas, mas também oferecesse esperança. Acho que não faz sentido dizer: “Ah, não, é tarde demais, o neoliberalismo vai destruir o planeta e não há nada que possamos fazer a respeito”. Acho que não, existem lacunas e caminhos que levam em outra direção. Como diz o próprio Celso, devemos buscar transformar a sociedade.

Há uma frase que compõe o subtítulo do filme — “Se a história não se repete, às vezes é igual” — por isso temos que continuar atentos. A extrema direita opera em todo o mundo. O documentário também fala sobre o perigo constante de cair nas garras da tirania, de ser controlado por pessoas que colocam o lucro em primeiro lugar.

Como foi gravar todo esse documentário com seu pai, Celso? Ele é uma figura importante na política contemporânea no Brasil e no mundo, uma autoridade, mas ainda é seu pai…

Pode parecer mais fácil, mas não é necessariamente assim. Além de ser uma figura de destaque, ele é meu pai, então tem todas as ligações pessoais que acabam permeando esse processo. Mas foi muito interessante, a presença dele foi forte, ele foi um contraponto, uma perspectiva brasileira, senão seria a perspectiva de um intelectual americano falando da América Latina. Eles concordam em muitas coisas, mas têm opiniões diferentes sobre outras, e no final acaba sendo um diálogo muito interessante entre os dois.

Mas posso olhar com orgulho para o seu carácter e para o trabalho que realizou, independentemente de ele ser meu pai. Ele tem muito a acrescentar e fazer o filme foi um aprendizado incrível para mim. E acho que duvido que alguém tivesse coragem de fazer deste filme um diálogo entre eles… então tinha que ser eu (risos).

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